sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Melhora. Melhora muito.

"Seth Walsh, um menino estadunidense de 13 anos, enforcou-se no dia do meu aniversário. A mídia dos Estados Unidos vem dando projeção a vários suicídios de jovens homossexuais, ou jovens rotulados como tal. No Brasil, a situação deve ser parecida, mas a publicidade que se dá aos casos é muito menor, ou seja, esse grupo de seres humanos não tem a mesma voz. Imagino que aqui, na Ni carágua, não seja muito diferente, bem como na maioria dos países latinoamericanos, ou do resto Terceiro Mundo. Aqui temos a pobreza e o conservadorismo da posição de algumas religiões para nos silenciar.

No meu país, segundo o grupo E-Jovem, de Campinas, minha cidade natal, três adolescentes homossexuais se matam por dia no Brasil. O Grupo Gay da Bahia contabiliza 160 mortes violentas de homossexuais por ano.Nenhum caso específico moveu a mídia como os recentes suicídios nos Estados Unidos. Não teremos um episódio de um seriado para levantar a discussão, não ainda, na América Latina. Mas isso não significa que não haja gente preocupada. Há, sim, muita. Entre militantes, familiares e amigos de homossexuais, ou, simplesmente, pessoas capazes de reconhecer o que é humano em outras pessoas, entre todos esse, podemos contar com muita gente que também se deixa mover pela situação de pessoas que, por enquanto, ainda precisam de apoio para poder se expressar.

Assisti, nas últimas semanas, a alguns vídeos americanos que dizem que as coisas melhoram depois. Eu sei que o sofrimento e o desespero na hora em que as coisas terríveis acontecem - garanto, eu sei - parecem infinitos. Sei que as horas depois de um ataque, de uma intimidação, são as horas mais escuras da vida de uma pessoa. Mas é verdade. Melhora, sim. E tenho certeza que, nos meus momentos difíceis de infância e adolescência, se eu tivesse visto um vídeo assim, ou lido um texto como o meu, a dor teria sido menor. Por isso vou contar minha história.

Eu queria, antes de dar meu depoimento, pedir desculpas a amigos e familiares que saberão de eventos muito ruins que me aconteceram através dessa mensagem. Gostaria que soubessem que se eu não disse nada na época, foi por medo. E se nunca disse nada até hoje, foi por amor. Eu sobrevivi, e sou uma pessoa mais ou menos interessante hoje. E uma pessoa muito feliz e muito segura do amor que a rodeia.Não era preciso contar a vocês hoje. E se agora eu faço circular uma mensagem, é porque quero falar com todos os jovens que acham que não vale a pena continuar vivendo. Este relato é para eles. E aos familiares e amigos, quero que me entendam com o amor que temos uns pelos outros, e que usem essa força para apoiar aos que agora necessitam de apoio. Não será muito fácil para vocês lerem. Nem é fácil de escrever, confesso.

Eu era um menino muito tímido, com muita dificuldade em fazer amigos. Não era uma criança muito bonita, era magrinho, desajeitado, e tinha voz de menina. Era perseguido todos os dias pelos colegas de classe, quase todos, que gritavam: "mulherzinha, mulherzinha!" Doía, mas aprendi a não escutar, e tinha um grande amigo, o Bruno, que não é homossexual, que fazia a minha vida mais fácil. Quando não brincava com Bruno, eu me encolhia num canto para ler. Um dia, em 1987, quando eu tinha 9 anos, no terceiro ano do primário, num desses dias de leitura em que o Bruno não tinha ido à escola, dois garotos mais velhos me agarraram na porta da sala de aula e me levaram a um canto escondido. Ali, me bateram, me tocaram no traseiro, e me obrigaram a pôr seus pênis na boca. Tudo isso durante o recreio. Depois de chorar muito e me acalmar, voltei à sala de aula atrasado, e fui repreendido pela professora, que mandou chamar meus pais, a quem eu não disse nada.

Aprendi cedo a dissimular, e a vida na escola, até o colégio, foi mais ou menos tranquila. Havia comentários, risos no corredor, mas nada parecido voltou a ocorrer. Não era bom ir à escola, é verdade. Mas não era o fim do mundo. Em 1996, quando eu tinha 17 anos, depois de vencer o medo, entrei em uma discoteca gay, sozinho. Conheci um homem mais velho lá dentro. Na hora de ir embora, ele não me deixou voltar para casa. Levou-me a um terreno baldio, onde me violou e me abandonou inconsciente. Acordei no dia seguinte, e embora fosse um dia de verão em Campinas, foi o dia mais escuro da minha vida. Abandonado e triste ali, sem poder contar com a compreensão de ninguém, eu pensei que valeria a pena me matar. Não tinha com o quê. Então voltei para casa, e desisti do projeto. E, depois, o tempo passou. Fui morar sozinho em São Paulo, aos 18 anos, e fui resolvendo minhas questões.

Pouco a pouco descobri que não deveria ter tido medo da minha família. Meu pai, minha mãe, minha madrasta, meur irmãos, todos foram se mostrando muito compreensivos. Ou melhor, eu fui permitindo que eles participassem da minha vida e pudessem seguir demonstrando seu amor. Se num primeiro momento não lhes disse nada por medo, ainda não lhes havia contado nada por amor, como já disse. E fui encontrando amigos excelentes no caminho, gente que só se preocupa com o que temos em comum e que nos une.

Se eu pudesse, voltaria a 1996, e me recolheria, levantando-me no colo, daquele terreno baldio onde fui deixado. Depois de acalmar o jovem Hugo, gostaria de levá-lo a ver algumas coisas que aconteceram, pelas quais valeu apena continuar vivendo, esperando assim que esse jovem eu sofresse muito menos.

Eu o levaria à Universidade Estadual de Campinas, num dia normal de 2003, para se sentar comigo e meus colegas de curso. Aí ele veria que eu fui um aluno respeitado por professores e colegas, com boa produção acadêmica, e que vivi rodeado de amigos que, perto ou longe, sempre estariam presentes na minha vida. Ele veria como havia amor aí. E o levaria ao dia da minha formatura, o dia em que abracei minha família, emocionado, depois de ter recebido meu diploma de Letras. Mostraria o capítulo publicado na coletânea de textos sobre formação de professores de que participei em 2005, e como fiquei amigo da professora que a coordenou.

Depois, mostraria um dia de 2006 em que, descendo de um ônibus, indo com meu namorado para a casa de uma grande amiga, meu pai me informava por telefone que eu havia passado na prova de seleção para diplomatas, para que ele visse que eu choraria mais de alegria que de trsiteza no futuro. Depois o traria à Nicarágua, para ver quantos amigos me conquistariam - e eu conquistaria - em terra estrangeira, e quantas coisas boas faria pelos outros por aqui.

Deixaria para o final os dias mais importantes. Aquela noite em 2002, quando, do outro lado de um círculo de amigos que conversavam, vi, de verdade, o amor atrás do olhar de um garoto de cabelos cacheados e olhos escuros. Levaria a um dia de 2004 quando, na manhã depois de uma briga, voltei da padaria com um brownie que ele levaria para seu trabalho, e ao me despedir dele percebemos ao mesmo tempo que estaríamos juntos para o resto da vida. Eu o levaria a cada momento em que meu agora marido, diria que me ama, e em que eu diria o mesmo. O levaria a uma noite de 2006, quando o fui buscar no aeroporto de Brasília, onde demos nosso primeiro abraço de casados, já que começaríamos a morar juntos a partir de então. E a uma tarde de 2007, quando assinamos nossa União Homoafetiva, rodeados de amigos muito queridos. E mostraria a ele todas as fotos das viagens que fizemos juntos: Argentina, Chile, Barbados, Cuba, Estados Unidos, tantas.

Eu resisti. Não sei como resisti. Podia não ter resistido. E podia ter sofrido menos se houvesse, nos anos noventa, a série de vídeos do tipo "It gets better". Ou alguém que me dissesse que eu não era mau, que não havia nada de errado comigo. Que dissesse que eu merecia amor, sim, como todos os outros seres humanos. Ou um texto como este que estou escrevendo agora.

O sofrimento não é necessário, não deveria ser necessário para poder crescer. Ninguém merece passar por situações assim. Mas quando a gente sofre, é bom ter em que pensar, ter esperança de que tudo vai melhorar.
Se eu estou feliz hoje? Muito. Ainda bem que não decidi me matar. Valeu a pena resistir só para me dar a chance de ter essas memórias, e de saber que outras tantas memórias semelhantes estão por vir. Valeu apena resistir só para acordar todos os dias e me lembrar de tanta gente que amo tanto, e que me ama de volta.

Eu quero dizer aos adolescentes isto: aguentem. É ruim agora. Mas depois melhora, melhora muito. E vocês, pessoas fortes e interessantes que serão, poderão se juntar a todos nós que sobrevivemos - e somos muitos! - para ajudar àqueles que duvidam que vale a pena continuar. E quem sabe, um dia, nenhum jovem homossexual tenha de duvidar do valor que a vida e suas memórias têm.

Eu sou de verdade, sim. Meu nome é Hugo Lorenzetti Neto, e agora que escrevo, estou servindo na Embaixada do Brasil em Manágua. Meu e-mail é hugolorenzetti@gmail.com, e estou disponível para quem precisar de apoio, para quem precisar dizer algo ou ouvir algo, ou para quem queira me engajar na luta legítima contra a intolerância, a violência contra os homossexuais e o suicídio motivado pelo simples fato de ser diferente, homossexual ou não.
Manágua, 15 de outubro de 2010."
Hugo Lorenzetti Neto

(Photo by http://euelaeaescrita.blogspot.com/2010/01/o-casamento-gay-acaba-de-ser-aprovado.html)
Ps.: a foto não é do autor do texto.

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